Texto da aula do dia 21/05/2009


CULTURA, ECONOMIA E SOCIEDADE NO GOVERNO LULA: UM BREVE COMENTÁRIO CRÍTICO

Samuel Araújo, Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ




Procuro neste texto comentar as relações entre cultura, economia e sociedade embutidas em políticas públicas formuladas no âmbito do Ministro da Cultura, como constatado em discursos que propõem haver uma relação intrínseca entre cultura e desenvolvimento, deduzindo daí que o investimento em cultura, no sentido mais monetário da palavra, seria imprescindível ao pleno desenvolvimento econômico e social. Estabelecendo um breve contraponto com um determinado discurso do Sr. ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil, procurarei abordar criticamente os seguintes pontos, a meu ver, equivocados da formulação de políticas para a cultura:


1-a redução de processos histórico-econômico-sociais complexos a uma espécie de magia de grandes inovadores artísticos, notadamente aqueles que teriam conseguido “driblar” situações econômico-sociais adversas, daí podendo se chegar à conclusão apressada de que “cultura” contribui para a superação e, em última instância, preenchimento do espaço ocupado pela violência e pela “exclusão”;


2- a limitação do tratamento de temas como “identidade”, “diversidade” e “desenvolvimento” a uma espécie de “tudo-pode”, que se esquiva de tomar partido de determinados movimentos, procedimento talvez compreensível como postura acadêmica, mas de difícil sustentação na área de formulação de políticas;


3- referência constante à equação cultura = desenvolvimento, onde se insinua vaga idéia de um não menos vago desenvolvimento sustentável dependente da chamada indústria cultural, levando a uma questionável expectativa de melhoria de padrão de vida, seja lá qual for o critério, a depender de “mais cultura”;


4- uma idéia de cidadania como algo a que se deve proporcionar acesso, tendo como instrumento “facilitador” o poder público, e desconsiderando o papel de uma práxis que eventualmente possa desestabilizar a própria noção do que seja um “poder público”.


Antes, porém, noto que, no âmbito federal, e por mais que se discorde do Ministério da Cultura (MinC) em seu papel formulador após a instalação do governo Lula, jamais foi tão intensa, no período pós-ditadura militar, a articulação dos setores potencialmente interessados em tais políticas, talvez pela visibilidade igualmente inédita que os temas polêmicos relativos à ação do ministério adquiriram em sua atual gestão.[1] Sua inauguração, por sinal, já obteve ressonância inusitada, muito certamente atribuível ao renome do ministro e a polêmicas anteriores sobre sua hesitação em aceitar o cargo, face à diferença por ele alegada entre o baixo salário de primeiro escalão da república (8 mil reais) e o cachê astronômico de um músico internacionalmente reconhecido, com ampla vantagem para este último. No discurso de posse, a imprensa ressaltou o jeitão acadêmico, em sua auto-proclamada meta de um realizar um do-in (técnica corporal em moda nos anos 60) antropológico no mal-tratado corpo da cultura brasileira, e também sua ênfase em noções como globalização, identidade, pluralidade étnica, miscigenação, economia auto-sustentável etc. Destacava-se ainda, ao olhar dos especialistas, sua oposição ao termo “folclore” em favor do mais antropologicamente correto “cultura” no que tange à produção expressiva de origem popular, não mediada por convenções de escrita ou por processos de produção industrial.


Em pronunciamento realizado em 2004,[2] aqui utilizado como referência mais direta, esses temas são de algum modo retomados, mas o objetivo é acima de tudo referendar a equação cultura = desenvolvimento, adotando-se desde o início um tom aberto aos muitos encontros culturais hoje possíveis, um “quase tudo-pode” aparentemente sem conflitos:


A globalização que produz a hegemonia também acelera as trocas e os encontros, ampliando as contaminações, as miscigenações, as metamorfoses. Que podem ser apropriações. Que podem ser banalizações. Que podem ser reduções ou desqualificações. Mas que muitas vezes são ambiências multiplicadoras, caleidoscópicas, amplificadoras.

Admite-se, assim, inúmeras possibilidades de repercussão da cultura global em culturas locais e vice-versa, evitando radicalizações apressadas anti-globalização, o que pode ser um sinal simpático para o público em geral, mas dificilmente dará instrumentos ao formulador de políticas para se posicionar como tal diante de situações vividas por indivíduos concretos em situações de pressão. Em pesquisa realizada por nós com uma equipe mista de moradores da Maré e pesquisadores universitários, por exemplo, observa-se naquela localidade, de fato, reapropriações criativas da cultura global, que abrem caminho a questionamentos instigantes sobre a experiência local em toda sua complexidade. No entanto, isso não exclui a face cruel da assim chamada globalização, que também se encontra presente no mesmo local, como atesta o registro de inúmeros exemplos de banalização da experiência cultural via consumismo que não leva a saídas, de redução da experiência cultural ou estética dos moradores da Maré ao “acesso” aos “monumentos artísticos” determinados por critérios de qualidade externos e inacessíveis à população local, sem que essa seja esclarecida de modo a poder concordar ou não com a validade desses “monumentos”, ou ainda a sistemática desqualificação da experiência dos “excluídos”, como “carência” que deve ser suprida pelo conteúdo supostamente “transformador” que vem “de fora”, não raro com apoio do poder público.


Essa mesma postura política desloca a definição de desenvolvimento para o âmbito das diversas culturas, procurando aí possibilitar, a meu ver acertadamente, que a formulação de políticas compreenda o diálogo com a grande variedade de interesses sociais em questão:

Quando se fala em cultura e desenvolvimento, portanto, o pressuposto mais importante é o de que o próprio desenvolvimento é um conceito que se forma dentro de determinado ambiente cultural, e que se modifica ao longo do tempo, sendo, portanto, necessariamente cultural.

Em seguida, porém, o discurso do ex-ministro volta a uma certa ambigüidade, certamente perigosa no que se refere à condução de políticas públicas em país ainda tão marcado por profundas desigualdades, deixando transparecer uma certa omissão do Estado em estabelecer quaisquer parâmetros de arbítrio e decisão sobre os conflitos que inevitavelmente surgirão diante das correlações de forças expressas em ações culturais concretas:

... as identidades culturais existem no diálogo com as demais, e dependem deste diálogo para sobreviver. Significa o reconhecimento de que a promoção da identidade e da diversidade cultural e do convívio tolerante entre sociedades, grupos sociais e indivíduos é vital para a democracia e está entre os deveres básicos dos governos.

É imperativo lembrar, no entanto, que boa parte dessa reconhecida diversidade se deve à existência no Brasil de verdadeiros abismos sociais e econômicos, permeados por desigualdades e hierarquias raciais e regionais (e muitas outras) historicamente arraigadas, cujo rompimento dificilmente se dará sem ações mais políticas incisivas e de certo nível de confronto. Confronto esse, que fique bem claro, que não deve implicar necessariamente violência de tipo institucional ou outra qualquer, mas um diálogo radical baseado em verdadeiro conhecimento, como diria um Paulo Freire, um conhecimento demolidor de mitos de superioridade natural que camuflam relações de dominação e subordinação baseadas única e exclusivamente na força física latente ou manifesta.


O tópico seguinte no discurso de Gil ilustra, porém, e de modo exemplar, um ponto-chave das políticas em curso:

...o crescimento econômico e o comércio global devem ser culturalmente justos e sustentáveis. As Indústrias Criativas representam hoje, não apenas para o Brasil, mas para muitos países em desenvolvimento, o coração de suas chances de sucesso na globalização.

Quanto mais a produção e a comercialização de bens e serviços estiver imbuída da cultura local, maior será o seu valor, a sua abrangência, inclusive global, e o seu impacto transformador. E maior será também a sua vantagem comparativa. Trata-se do “glocal”.

Neste ponto, anuncia-se a real meta a se alcançar, bem de acordo com os ventos simultaneamente sombrios e alvissareiros, detectados por certos analistas econômicos, de uma superação do mundo do trabalho tal qual ele foi conhecido pelo menos desde a segunda revolução industrial, rumo ao mundo do conhecimento, onde obterá autonomia aquele que detiver a propriedade de softwares (em outras palavras, de conhecimento original que possa ser patenteado), por assim dizer, originais e vendáveis em escala global, através da “livre” (mais aspas seriam necessárias aqui) competição entre as assim denominadas “indústrias criativas”. Assume-se, portanto, a perspectiva de um mercado global da diferença, em que a propriedade sobre produtos exóticos e universalmente desejáveis seria a principal forma circulante de capital. O passo seguinte nesse tipo de argumento, como não poderia deixar de ser, é destacar o investimento do poder público necessário à consolidação de tal política:

A cultura, como o meio ambiente, já foi encarada como um custo ao desenvolvimento. Vista de outra maneira, torna-se um manancial de recursos positivos. Trata-se do que o próprio Banco Mundial denominou “win-win”, ou seja, “oportunidades duplamente vencedoras”. A produção de um conhecimento abrangente, complexo, capaz de lidar com a multiplicidade, a fragmentação e as incongruências do real, pode ser a chave para o duplo “win”, na gestação de um projeto democrático e plural de nação, que incorpore tanto o planejamento tradicional quanto a gestão das demandas, o imponderável, as surpresas, aquilo que Cartola chamaria de “as voltas que a vida dá”, muitas vezes intangíveis e implanejáveis, mas inexoráveis.

É no mínimo irônico procurar apoiar tal “argumento” em Cartola, grande compositor mangueirense que tão bem conheceu outro tipo, alheio, de win-win, aquele em que, graças ao peso de injustiças históricas como o racismo e a desigualdade econômica, tanto a interpretação cantada quanto a propriedade de alguns de seus sambas passaram para o controle de cantores brancos de classe média, que gravaram e compraram a autoria de suas músicas. Mas talvez ainda mais perigoso seja o eventual poder de sedução da associação entre cultura e ecologia[3], a primeira vista como mais um exemplo de recurso econômico de fonte “limpa”, não predatória, cuja falácia não merece maior detalhamento nesta breve discussão. As associações apressadas com outras áreas seguem, no entanto, pontuando o texto em questão, quando uma reflexão mais profunda, talvez de caráter comparativo, poderia ser bastante produtiva:

O recente Relatório de Desenvolvimento Humano – 2004 da ONU destaca o papel estratégico da cultura na atuação dos governos. Também incorpora o acesso à cultura como indicador para avaliar a qualidade de vida e o desenvolvimento. O IDH, a partir de agora, põe a cultura ao lado da educação, da saúde e de outras questões vitais.

Tomando o caso da saúde como exemplo, a noção de cultura como valor em mercado, que engloba o que se denomina indústrias criativas, parece se remeter a uma concepção de saúde mais próxima da associação de senso comum entre saúde e medicalização, com ênfase, no caso da área de saúde, a hospitais e centros médicos de alta especialização e alta competência, bem como investimentos de grande porte, principalmente em tecnologia “de ponta”. Tudo isso em detrimento de iniciativas de promoção da saúde reivindicadas pelos movimentos sociais em prol da defesa e promoção da saúde pública, certamente não tão dependentes de uma organização de tipo capitalista, de tecnologias “avançadas” ou de investimentos vultosos, mas respaldadas na mobilização da sociedade.


Próximo à conclusão do texto aqui examinado, pronuncia-se de modo mais claro as metas desejadas:


E não se trata exatamente da diversidade cultural ou da intensidade da produção cultural, do talento dos artistas, dos gestores, mas do grau de acesso da população à produção e à fruição da diversidade e da intensidade. É aí que entram as políticas públicas. É aí que a cultura se torna um dos direitos fundamentais do homem. É aí que os governos têm um papel que o mercado não substitui, até porque se trata de ajudar a desenvolver o próprio mercado cultural.

O investimento nesta área é um investimento no desenvolvimento do país, com impactos objetivos e subjetivos sobre a vitalidade da economia e da sociedade brasileira. Cultura gera auto-estima e renda. Cultura faz um país. E um povo.

Destaca-se, portanto, a noção de cultura como instrumento reafirmando o caráter supostamente positivo de valores e relações sociais já consagradas em meio a profundas desigualdades, sem que se faça a crítica das formas absurdas de perversão social, política e econômica que estão por trás desses mesmos valores e relações sociais. Esse quadro nos parece pouco consistente como modelo de um governo que aglutinou por um momento a esperança popular de mudança no país, ainda que admitamos—e o fazemos, sem pretender a abolir—a existência da indústria cultural como um dado do mundo contemporâneo, que comporta interesses a serem considerados na formulação de políticas públicas, exigindo que existam ações de mediação entre interesses contraditórios no âmbito do MinC.[4]


Ainda que de modo incipiente, a já mencionada experiência de pesquisa desenvolvida pelo Laboratório de Etnomusicologiada UFRJ em colaboração com o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, ONG findada por residentes daquela região do Rio de Janeiro, aponta em direção distinta. Apoiada na perspectiva dialógica aberta por Paulo Freire, ela tem como eixo que os próprios residentes identifiquem os temas relevantes a serem pesquisados, documentem, reflitam e debatam entre si e com sua comunidade as formas de produção e circulação da música, como estratégia de mobilização das populações marginalizadas da vida social, política e econômica brasileira. Instaurando no próprio espaço comunitário um centro de produção de conhecimento gerido pelos moradores, tendo à disposição uma equipe acadêmica como colaboradora, uma bibliografia pertinente às áreas de pesquisa definidas pelos moradores e alguns recursos tecnológicos “não tão de ponta”, desenvolvem-se atividades como discussões sistemáticas, algumas programadas, outras não-programadas, leitura e discussão de textos, exercícios de escrita etnográfica, dramatizações, debates sobre registros variados da vida social, exercícios iniciais de documentação, participações em fóruns internos e externos de debate; formação em geração e edição de documentários sonoros e audiovisuais.


Em conclusão, arriscaria dizer que, sem exigir investimentos tão altos nem desprezar a indústria cultural, mas tomando o que aqui foi discutido como questões abertas, evitando sua transformação em tema sem discussão, tal direcionamento pode apresentar, contribuições potenciais a políticas públicas, com ângulos de abordagem inovadores e socialmente mais comprometidos aos debates sobre patrimônio cultural, cidadania, protagonismo, educação, redistribuição de renda e, por fim, sobre o próprio papel do mundo acadêmico em processos de mudança social.


[1] Refiro-me aqui principalmente à repercussão de uma idéia debatida em âmbito nacional, e por algum tempo nas primeiras páginas da chamada grande imprensa, de cláusula exigindo a explicitação de “contrapartidas de cunho social” em editais federais de financiamento à produção cultural, aliada à centralização da gestão de todos os programas federais de incentivo à cultura, inclusive o grande filão de patrocínios das empresas estatais, no Ministério das Comunicações. A reação maior veio de alguns setores da área cinematográfica, com apoio óbvio de vencedores contumazes de editais de patrocínio público, acusando os gestores identificados com tal proposta de patrocinadores do totalitarismo cultural. O próprio ministro, pressionado, colocou-se como descompromissado com a referida proposta, que acabou saindo inteiramente de pauta.

[2]Ministro da Cultura, Gilberto Gil, na Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). 26/10/2004. (Disponível em http://www.cultura.gov.br/noticias/discursos/index.php?p=871&more=
1&c=1&pb=1; Último acesso: 08/10/2005)
[3] O investimento em projetos ecológicos teria estaria na origem do termo econômico win-win, já que nele supostamente ganham os investidores e o meio ambiente.
[4] Refiro-me, mais especificamente, à implantação das Câmaras Setoriais de Música e das Culturas Populares.