O que é cultura?

Chorinho, de Cândido Portinari



por Adriana Facina (antropóloga e professora do Departamento de História da UFF)

Responder a pergunta acima é muito difícil. Se perguntarmos a 10 pessoas o que é cultura, provavelmente teremos 10 respostas diferentes. Por isso, muita gente afirma que cultura é um termos polissêmico. Poli é o mesmo que muitos e sêmico vem de semia, sentidos. Resumindo: a palavra cultura tem muitos significados.


Uma coisa é certa: a origem da palavra tem a ver com o cultivo da terra. Do mesmo modo que a terra tem de ser trabalhada para que gere frutos, os seres humanos não nascem cultos. A cultura deve ser apreendida e, desde cedo, somos socializados na cultura em que nascemos. Não existe, portanto, alguém que seja culto de nascença, do mesmo modo que não há ser humano sem cultura.


Dois sentidos predominam quando falamos em cultura. O primeiro é aquele que associa cultura a um saber erudito, ou às artes, filosofia, enfim, aquilo que alguns consideram ser as obras mais elevadas do espírito humano. É neste sentido que utilizamos expressões como “fulano é culto”, quando estamos descrevendo alguém que sabe muitas coisas intelectualizadas, entende de ópera, música clássica, artes plásticas, história etc.


Esse sentido da palavra cultura se desenvolveu, sobretudo, no século XVIII na Europa, quando aquelas sociedades passavam por um processo de grandes transformações que estavam criando o capitalismo. Essas transformações eram recebidas com entusiasmo pela burguesia e por grupos sociais que tiravam seus lucros do comércio, da agricultura mercantil ou da industrialização nascente. Mas vários outros segmentos as viam com grande desconfiança, pois a modernização ameaçava seus modos de vida. Camponeses, nobreza, artesãos, artistas, intelectuais, entre outros, percebiam que elementos significativos estavam se perdendo em nome da padronização, da mercantilização de tudo, do poder do dinheiro, da pressa, do que alguns deles vão chamar alienação, que é o estranhamento dos seres humanos entre si e com a natureza.


O surgimento o campo da arte e da cultura no mundo contemporâneo tem a ver com essa crítica às transformações trazidas pelo capitalismo. A arte seria um tipo de atividade humana na qual a criatividade ainda seria possível, na qual o trabalho poderia ser significativo e não apenas sofrimento. Uma finalidade sem fim, no dizer do filósofo Immanuel Kant. Ou seja, uma atividade que tem validade em si mesma, não precisa de objetivos políticos, econômicos, religiosos etc. Assim, a arte e a cultura formariam uma espécie de campo protegido da vida mecânica e sem sentido do mundo capitalista.


O problema nesta concepção é que, em geral, ela está associada a um elitismo. Como resistência a uma tendência predominante naquela época, muitos artistas, literatos, intelectuais vão ver esse campo como acessível apenas a poucos. Os artistas seriam gênios criadores, indivíduos tocados por um talento excepcional e a arte passa a ser vista como fruto dessa individualidade singular. O público fruidor como pessoas “de gosto”, gente vista como possuindo bom gosto e capacidade de discernir o que é ou não belo, sofisticado, refinado, profundo. Desse modo, somente uma elite seria capaz de produzir, fruir e compreender a arte e a cultura, defendendo esse mundo contra a barbárie das massas brutalizadas pelo cotidiano alienado e massacrante sob o capitalismo.


O outro sentido é o que entende cultura como um modo de vida. Assim, não somente a chamada “alta cultura”, mas também a cultura popular, os costumes e mesmo aquilo que percebemos como mais natural em nossos cotidianos pode ser percebido como cultural. Um exemplo: todos os seres humanos têm fome e se alimentam, porém o que e como comemos é parcialmente determinado pela cultura em que fomos socializados. Assim, comidas que para nós parecem deliciosas, podem parecer no mínimo estranhas para outras populações.


Diferentemente da concepção elitista, nesta concepção, que poderíamos chamar de antropológica, não existe ser humano sem cultura, nem povo sem cultura e nem mesmo culturas superiores ou inferiores a outras. Tão culturais quanto uma ópera de Verdi ou uma sinfonia de Beethoven, são a capoeira, o candomblé, o jongo, o acarajé.


Mas aqui também há um problema. Muitas vezes essa concepção de cultura é utilizada para explicar processos históricos ou políticos de forma simplificada. Assim, tudo seria cultural em última análise, desprezando-se outros fatores econômicos, políticos e sociais que determinam os processos históricos. Por exemplo: quantas vezes não ouvimos dizer que o conflito árabe-israelense na Palestina tem motivo religioso-cultural? No entanto, se formos examinar com mais cuidado, antes do sionismo estabelecer pela força um Estado religioso naquela localidade, o que se deu nos anos 1940, judeus e árabes conviviam em harmonia. Portanto, os motivos culturais servem muito mais como uma justificativa que busca legitimar aquele conflito e apresentá-lo como eterno, sem solução, alimentado a indústria da guerra e o genocídio do povo palestino.


Nesse culturalismo conservador, a idéia de cultura ocupa o mesmo lugar que a idéia de raça ocupava nos discursos racistas e imperialistas de finais do século XIX e início do século XX, que serviram para justificar a dominação da periferia do globo pelos países industrializados e centrais do capitalismo.


Um outro debate importante é o que envolve a indústria cultural. Este termo foi cunhado por um filósofo alemão chamado Theodor Adorno em 1947 e buscava explicitar a lógica da produção da cultura como uma mercadoria sob o capitalismo. A cultura, assim como quase tudo sob o capitalismo, é passível de se tornar mercadoria. E a indústria cultural é o ramo da economia que se dedica a produzir bens culturais em larga escala. Bens estes que, segundo Adorno, tem uma função de controle social importante, pois aliena as pessoas, as torna conformistas, consumistas, incapazes de desejar e fruir outras coisas senão as que lhes são apresentadas pela indústria cultural. Assim, por exemplo, o telespectador de novelas se tornaria incapaz de gostar de outras formas de narrativas mais densas e profundas, pois ele ficaria anestesiado pela necessidade do entretenimento, de ver sem ter de pensar ou refletir, usando a televisão como mera válvula de escape de um cotidiano massacrante de trabalho e escassez.


Essa crítica aos meios de comunicação e entretenimento é importante, mas ela gera uma visão muito pessimista e que não leva em conta que, por mais que a ideologia da indústria cultural possa ser favorável ao conformismo e busque manipular o público, as pessoas não são papéis em branco. Nós sempre comparamos aquilo que vemos na telinha, lemos nos jornais, ouvimos nas rádios com nossas experiências de vida. Então, sempre há mediações, brechas que contradizem os discursos hegemônicos e que abrem espaço para a construção de visões de mundo alternativas. Por isso, o estudo da cultura de massa, dessa cultura tornada mercadoria, é tão preciosa para coletivos que tem projetos de transformação social. O que o povo consome como arte e cultura, seus gostos são importantes caminhos para estabelecermos os diálogos necessários à construção de um mundo justo, democrático e igualitário. Se desprezarmos isso, rotulando como lixo cultural o consumo cultural popular, corremos o risco de cair numa postura elitista e autoritária.


Para evitarmos posturas elitistas e conservadoras é preciso, portanto, que vejamos a cultura como parte da produção e reprodução material da vida e não como algo que paira acima dos conflitos sociais, das questões econômicas e políticas. Falemos da arte ou de modos de vida, a cultura é parte de nossa vida material, pois nos expressamos no mundo através dela.


A partir dessa breve apresentação, podemos perceber que o debate sobre a cultura é necessariamente um debate político, onde é impossível a neutralidade. Cabe a nós refletirmos criticamente sobre teoria e práticas culturais que informam nossa intervenção no mundo. Termino este texto com uma frase do poeta russo Wladimir Maiakóvski: “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”. Vamos ao debate!