Segue abaixo o texto da aula sobre Gestão Cultural. A sala será a 207 do bloco O.
abraços e até lá!
O campo da Gestão Cultural
Luiz Augusto F. Rodrigues**
GESTÃO CULTURAL é um termo relativamente recente no cenário cultural brasileiro. A gestão pressupõe procedimentos administrativos e operacionais para a gerência de processos no campo da Cultura e da Arte. A gestão deve estar amparada num claro posicionamento conceitual a orientar seus objetivos.
Para melhor conceituarmos o campo da Gestão Cultural, podemos articulá-lo à idéia de mediação de processos de produção material e imaterial de bens culturais e de mediação de agentes sociais os mais diversos. Mediação que busca estimular os processos de criação e de fruição de bens culturais, assim como estimular as práticas de coesão social e de sociabilidade.
O gestor da cultura é alguém que estabelece com seu objeto e com os sujeitos nele envolvidos relações de compartilhamento de gestão e de responsabilidades. Alguém que entenda as práticas culturais como processos –dinâmicos, ambíguos e sujeitos a significações diversas. Entendendo que a realidade nos fornece a possibilidade que precisamos para ver e aprender com ela, sendo justamente este espaço de mediação que a torna concreta, conquanto possamos abrir devidamente olhos e ouvidos. Sentir potenciais, responder anseios e mesmo ampliá-los, reconhecer diferentes e particularizados modos de agir e de sentir. Planejar segundo os fazeres e os quereres que os diversos indivíduos e grupos deixam aflorar de seus cotidianos.
Buscando ser mais objetivo, pode-se dizer que a GESTÃO CULTURAL articula planejamento, operacionalização e mediação. Planejamento de eventos, de programas, de ações, de processos e de políticas em cultura. Operacionalização técnica, financeira, física e humana. Mediação de agentes diversos: governamentais, não-governamentais e comunitários; empresariais, cooperativados ou informais; produtores, viabilizadores e fruidores. E segundo perspectivas temporais que vão do curto ao longo prazo.
A gestão cultural pressupõe a formulação dos planos e também dos conceitos que os norteiam. Nesse processo, atuam concretamente planejadores e usuários, que buscam garantir a sustentabilidade das ações. Na gestão, trabalha-se por meio de ações integradas e estruturais, estruturantes e instituintes. Compreende noções básicas de fomento cultural (não somente a satisfação das necessidades culturais das populações envolvidas, mas também a ampliação dessa demanda); de preservação, resgate e vitalização de aspectos de sociabilidade e qualidade de vida; e a própria manutenção da vida com justiça social.
Alguns eixos temáticos devem estar inseridos nos processos de gestão cultural. Vejamos alguns.
Capital social
Capital social está ligado à capacidade de interação entre os indivíduos de um grupo, inclusive com novos participantes, em diferentes situações (no trabalho, na vizinhança, na sociedade). Envolve a circulação de idéias e a (re)formulação de práticas. Pressupõe reconhecer o outro e os comportamentos, as intenções, os valores, os conhecimentos que compõem o meio social e a capacidade de interagir em outros meios. Está intrínseco, nessas relações, compreender o papel das instituições nos meios sociais. Enfim, são as relações entre as pessoas e destas com as instituições – mediadoras dessas interações, tais como clubes, igrejas, empresas, governos, famílias, escolas etc. Isso implica confiança e adesão a normas e condutas às quais se sujeitam os indivíduos em associações locais e em redes, tanto as existentes quanto as potenciais; envolve o espírito gregário e de cooperação no interior dos grupos sociais.
O capital social aponta para a capacidade de os grupos, bem como os indivíduos de um grupo, se reconhecerem e confiarem uns nos outros. É, portanto, um elemento fundamental para o desenvolvimento de projetos coletivos.
Governança
Governança é um conceito que vai além da idéia de governabilidade. Enquanto esta última busca suporte político e econômico, a primeira pressupõe a participação da sociedade em gestões compartilhadas. Arranjos políticos e coligações partidárias podem aumentar a governabilidade. A capacidade técnica e o aporte financeiro fornecem importantes instrumentos de governo, mas não são suficientes. É necessário que haja o envolvimento dos diferentes atores sociais nos processos de elaboração de propostas e de execução de ações. É esse o quadro que vem se fortalecendo a partir dos anos 1990. Os processos de redemocratização vieram acompanhados da idéia de fortalecer e reconhecer os micro-poderes. Governos locais, movimentos associativos e ONGs vêm buscando estratégias para um caminhar conjunto.
Para que haja participação política e governança, é necessário que o Estado esteja presente para toda a sociedade – fato que nem sempre ocorre, sobretudo no Brasil – e que os mais fortes não sobrepujem os mais fracos. Governança é mediação entre governo e população. Concretiza-se por meio de instrumentos participativos e da gestão descentralizada.
Cabem algumas ressalvas. De nada adianta os governos “concederem” o direito à participação social (via conselhos comunitários, orçamento participativo, entre outros), mas não criarem condições amplas para o exercício e a continuidade desse direito. Algumas estratégias podem ser apontadas: qualificação do quadro técnico, capacitação da população, estruturação dos equipamentos sociais pertinentes, ou seja, organizar uma base técnica e material para o funcionamento dos instrumentos participativos.
Há, entretanto, uma longa estrada a ser vencida. Muitas ações de governo, em seus diferentes níveis, ainda estão calcadas nos arranjos políticos e em ações verticalizadas. Muitas ONGs, por exemplo, ocupam ainda o lugar do Estado nestes tempos de falácia neoliberal, em vez de se constituírem como associações complementares e co-participantes nos processos sociopolíticos. Os conselhos são “novidades” crescentes, mas quais são seus níveis decisórios? Como são constituídos? Que níveis de confiança mútua estabelecem?
Participação
Quem delega poderes não pode reclamar!
Para participar, é necessário fazer parte, estar incluído!
Participação e esfera pública são idéias inseparáveis. Fazem parte da própria concepção de política. É necessário refletir sobre esse termo.
Política nos remete à pólis – idéia grega que expressa a vida coletiva e o exercício de nossa esfera pública. Refere-se, então, às negociações entre os indivíduos, ao embate de nossos diálogos, a nossas falas e ações possíveis para além dos foros íntimo e privado, a nossas representações sociais coletivas. Entretanto, nossa cultura política se encontra esgarçada em sua dupla composição: enquanto cultura e enquanto política. A cultura como representação simbólica dos valores das sociedades mostra-se esgarçada enquanto possibilidade de reforço da coesão social. Os processos que (con)formam as representações sociais estão ligados à ação comunicativa e às práticas sociais e públicas (em suma, aos sistemas significantes, verbais e não verbais), como os diálogos, os rituais, os processos produtivos, as instituições, as artes, os padrões culturais, ou seja, as mediações sociais em seus diferentes espaços. Nossa sociedade informacional pós-industrial é uma sociedade da cultura de massa (e não da cultura das massas, com suas singularidades coletivas). Os recursos que ecoam nossas “falas” são amplos, velozes e tecnicamente sofisticados. Contudo, não reverberam nossas práticas públicas e coletivas, uma vez que pouco as exercitamos. Portanto, antes de discutir se as políticas são eficientes ou não, é necessário estabelecer que critérios norteiam essa eficiência.
É no encontro entre as esferas pública e privada que são construídas as subjetividades necessárias para a constituição da trama social. No dia-a-dia e no engajamento entre os diversos agentes se formam nossas representações sociais. A vida pública é um elemento intrínseco à plena construção da vida privada.
Redes sociais
O que se percebe no mundo contemporâneo, em especial no Brasil, é uma crescente perda de autogestão, além de uma banalização da esfera pública dos indivíduos. O quadro econômico de acirrado abismo social tende a reduzir ou quase anular a auto-estima das pessoas e sua auto-percepção e valorização pessoal, fatos que quase inviabilizam qualquer ação que busque uma requalificação social.
Creio que nosso desafio, hoje, é alcançar formas que, para além de preservar, democratizar e incentivar modos e práticas culturais diversificados, criem estratégias que reforcem o exercício público e político dos diversos atores sociais, de forma que todos e cada um possam ser protagonistas de si mesmos.
Creio, firmemente, que nosso desafio é conseguir constituir redes diversificadas de agentes sociais. O próprio conceito de rede reforça a possibilidade de êxito de qualquer proposta: rede que se estabelece a partir do comprometimento e do envolvimento das mais diversas esferas. É esse trabalho de “varejo” que se pode efetivamente construir novas possibilidades de caminhos conjuntos. Uma ação que se desdobra nos usuários mais diretos e destes com suas redes mais particularizadas que, pouco a pouco, podem se agregar aos “fios” anteriores. Dessa nova trama serão irradiados novos fios (que a ela se unem) e assim sucessivamente, tal qual nós de uma rede que se vai tecendo.
O que mais justifica e possibilita a sustentabilidade (entendida como a possibilidade de continuidade das ações) é o envolvimento das pessoas ou grupos em suas próprias condições de reprodução. O capital social é que gera as condições para que uma sociedade crie e desenvolva seus próprios fins, com governança e participação, considerando que os projetos coletivos necessitam do engajamento de muitos e que isso será alcançado se respaldado pela confiança coletiva e esta, pela capacidade de inclusão do outro como parceiro.
Lugar e não lugar
A cidade é uma construção material e, sobretudo, um espaço que resulta dos modos culturais dos que nela habitam e dela participam. Isso a transforma em um lugar apropriado afetivamente, ainda que sujeito a representações ideologicamente constituídas.
O espaço urbano reflete modos particularizados de vida social e sociabilidades (expressos, principalmente, nos espaços públicos de ruas e praças). É também, e como reflexo, o espaço das contradições, conflitos e ambiguidades. Um tecido social em crise acirra o caos urbano – violência, pobreza, individualismo, isolamento, privatização da esfera pública. Os mecanismos para a reversão de tal situação precisam ser identificados por meio de condutas metodológicas que busquem flagrar potencialidades para uma requalificação dos espaços públicos enquanto espaços de sociabilidades múltiplas e que identifiquem estratégias para um planejamento urbano que, em vez de reforçar experiências homogeneizadas (e ao mesmo tempo fragmentárias), possa reforçar a produção da cidade enquanto lugar antropológico permeado de sentido e memória.
Lugar pode ser entendido como expressão da singularidade, com toda a carga identitária (identidade com e do lugar), afetiva e simbólica que este assume.
Não lugar pode ser entendido pela ausência de referências com identidade própria e com a possibilidade de um relacionamento efetivo entre indivíduo e território. O não lugar se constitui de espaços de fraca apropriação e de relações efêmeras entre as pessoas. Tem menos a ver com cenários padronizados do que com seu oposto: a espetacularização dos espaços.
Lugar é pausa e contato. É real e singular. Gera experiência. É espaço usado e vivido. Não lugar é movimento e indiferença. É artificial e universal. Gera virtualidade. É espaço consumido e observado.
Em suma, deve-se buscar refletir sobre as condições de nossa urbanidade e nossa sociabilidade; refletir sobre as potencialidades e dificuldades para a qualificação e a vitalização dos espaços e sobre a gestão cultural do espaço da cidade (entendida pelo valor de uso dos lugares, e não pelo valor de troca em que a própria cidade é tomada como produto a ser consumido de maneira efêmera).
Gestão compartilhada da cultura
Pode-se entender cultura como um processo de sedimentação de memórias, a longo ou médio prazo, que opera com as diferenças de toda a sociedade. Se entendida dessa forma, seus propósitos são contrários ao da lógica de mercado – tomando esta por sua busca de imediatismo e padronização.
Se o agente da cultura for exclusivamente o Estado, a tendência é desenvolver políticas culturais marcadas por um “patrimonialismo estadista” ou por um “dirigismo estatal”. Se o agente for exclusivamente o mercado, culminaria em um “mercantilismo cultural” ou na “privatização da vida cultural”.
Ações consorciadas e conselhos podem se mostrar ferramentas importantes. Parcerias público-privadas, governo-sociedade e formas diversas de parceria e compartilhamento precisam ser buscadas.
O Brasil vivenciou durante muito tempo a falência de políticas sociais públicas inclusivas, ficando sob a ação sociocultural de organizações não governamentais. São mais de cem mil ONGs e centenas de milhares de voluntários. Caminho que, sozinho, também não resolve.
O aterrorizante “abismo social” que marca a sociedade brasileira tem mobilizado cada vez mais ações de segmentos os mais diversificados. Quando nos detemos nos índices de pobreza e de ausência de condições mínimas de vida, vemos um quadro no mínimo estarrecedor.
Em face de tanta carência, não podemos pensar isoladamente na arte, na cultura, na educação, na sociabilidade, na exclusão social ou em outros tantos “nas”. Não podemos implementar ações isoladas. Trata-se de prover e garantir a própria cidadania. Cultura e cidadania seriam como que palavras de ordem.
A história da modernidade buscou regimentar a esfera estatal como representante única da esfera pública. Pensamentos contrários buscariam atribuir a todo indivíduo três atuações básicas: pública, privada e íntima. Desse modo, as políticas culturais, sendo da esfera pública, estariam ligadas tanto ao Estado quanto à sociedade inteira.
Não há, portanto, como dissociar a ação cultural de noções ligadas à cidadania, à justiça social, à afirmação da sociedade civil e da ação pública ou mesmo à ética. Devemos somar todas as forças possíveis, conclamar os diversos agentes sociais e a sociedade.
Que papel a cultura pode ter na mudança da realidade? Como fazer belos conceitos saírem do papel (empoderamento, protagonismo social, responsabilidade social, inclusão social, sustentabilidade, capacitação profissional e geração de renda e emprego através da cultura)? Como estabelecer e fortalecer redes sociais? Como estimular e incorporar a governança e o capital social como estratégias para nossas ações? Como promover a ética como a estética de vida dos indivíduos? São desafios que nos são lançados diariamente enquanto agentes da cultura.
EMENTA:
Cultura como processo. Gestão cultural e seus agentes. Conceitos correlatos e constituintes da gestão cultural. Gestão cultural e participação.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.
CHAUÍ, Marilena. Considerações sobre a democracia e alguns dos obstáculos à sua concretização. In: Seminário Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Polis.
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública: a construção simbólica dos espaços públicos no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
RATTNER, Henrique. Prioridade: construir o capital social – os descaminhos do desenvolvimento. (2000) Disponível em http://www.abdl.org.br/rattner.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1996.
SEVCENKO, Nicolau. O desafio das tecnologias à cultura democrática. In PALLAMIN, Vera M. (org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 37-47.
Luiz Augusto F. Rodrigues**
GESTÃO CULTURAL é um termo relativamente recente no cenário cultural brasileiro. A gestão pressupõe procedimentos administrativos e operacionais para a gerência de processos no campo da Cultura e da Arte. A gestão deve estar amparada num claro posicionamento conceitual a orientar seus objetivos.
Para melhor conceituarmos o campo da Gestão Cultural, podemos articulá-lo à idéia de mediação de processos de produção material e imaterial de bens culturais e de mediação de agentes sociais os mais diversos. Mediação que busca estimular os processos de criação e de fruição de bens culturais, assim como estimular as práticas de coesão social e de sociabilidade.
O gestor da cultura é alguém que estabelece com seu objeto e com os sujeitos nele envolvidos relações de compartilhamento de gestão e de responsabilidades. Alguém que entenda as práticas culturais como processos –dinâmicos, ambíguos e sujeitos a significações diversas. Entendendo que a realidade nos fornece a possibilidade que precisamos para ver e aprender com ela, sendo justamente este espaço de mediação que a torna concreta, conquanto possamos abrir devidamente olhos e ouvidos. Sentir potenciais, responder anseios e mesmo ampliá-los, reconhecer diferentes e particularizados modos de agir e de sentir. Planejar segundo os fazeres e os quereres que os diversos indivíduos e grupos deixam aflorar de seus cotidianos.
Buscando ser mais objetivo, pode-se dizer que a GESTÃO CULTURAL articula planejamento, operacionalização e mediação. Planejamento de eventos, de programas, de ações, de processos e de políticas em cultura. Operacionalização técnica, financeira, física e humana. Mediação de agentes diversos: governamentais, não-governamentais e comunitários; empresariais, cooperativados ou informais; produtores, viabilizadores e fruidores. E segundo perspectivas temporais que vão do curto ao longo prazo.
A gestão cultural pressupõe a formulação dos planos e também dos conceitos que os norteiam. Nesse processo, atuam concretamente planejadores e usuários, que buscam garantir a sustentabilidade das ações. Na gestão, trabalha-se por meio de ações integradas e estruturais, estruturantes e instituintes. Compreende noções básicas de fomento cultural (não somente a satisfação das necessidades culturais das populações envolvidas, mas também a ampliação dessa demanda); de preservação, resgate e vitalização de aspectos de sociabilidade e qualidade de vida; e a própria manutenção da vida com justiça social.
Alguns eixos temáticos devem estar inseridos nos processos de gestão cultural. Vejamos alguns.
Capital social
Capital social está ligado à capacidade de interação entre os indivíduos de um grupo, inclusive com novos participantes, em diferentes situações (no trabalho, na vizinhança, na sociedade). Envolve a circulação de idéias e a (re)formulação de práticas. Pressupõe reconhecer o outro e os comportamentos, as intenções, os valores, os conhecimentos que compõem o meio social e a capacidade de interagir em outros meios. Está intrínseco, nessas relações, compreender o papel das instituições nos meios sociais. Enfim, são as relações entre as pessoas e destas com as instituições – mediadoras dessas interações, tais como clubes, igrejas, empresas, governos, famílias, escolas etc. Isso implica confiança e adesão a normas e condutas às quais se sujeitam os indivíduos em associações locais e em redes, tanto as existentes quanto as potenciais; envolve o espírito gregário e de cooperação no interior dos grupos sociais.
O capital social aponta para a capacidade de os grupos, bem como os indivíduos de um grupo, se reconhecerem e confiarem uns nos outros. É, portanto, um elemento fundamental para o desenvolvimento de projetos coletivos.
Governança
Governança é um conceito que vai além da idéia de governabilidade. Enquanto esta última busca suporte político e econômico, a primeira pressupõe a participação da sociedade em gestões compartilhadas. Arranjos políticos e coligações partidárias podem aumentar a governabilidade. A capacidade técnica e o aporte financeiro fornecem importantes instrumentos de governo, mas não são suficientes. É necessário que haja o envolvimento dos diferentes atores sociais nos processos de elaboração de propostas e de execução de ações. É esse o quadro que vem se fortalecendo a partir dos anos 1990. Os processos de redemocratização vieram acompanhados da idéia de fortalecer e reconhecer os micro-poderes. Governos locais, movimentos associativos e ONGs vêm buscando estratégias para um caminhar conjunto.
Para que haja participação política e governança, é necessário que o Estado esteja presente para toda a sociedade – fato que nem sempre ocorre, sobretudo no Brasil – e que os mais fortes não sobrepujem os mais fracos. Governança é mediação entre governo e população. Concretiza-se por meio de instrumentos participativos e da gestão descentralizada.
Cabem algumas ressalvas. De nada adianta os governos “concederem” o direito à participação social (via conselhos comunitários, orçamento participativo, entre outros), mas não criarem condições amplas para o exercício e a continuidade desse direito. Algumas estratégias podem ser apontadas: qualificação do quadro técnico, capacitação da população, estruturação dos equipamentos sociais pertinentes, ou seja, organizar uma base técnica e material para o funcionamento dos instrumentos participativos.
Há, entretanto, uma longa estrada a ser vencida. Muitas ações de governo, em seus diferentes níveis, ainda estão calcadas nos arranjos políticos e em ações verticalizadas. Muitas ONGs, por exemplo, ocupam ainda o lugar do Estado nestes tempos de falácia neoliberal, em vez de se constituírem como associações complementares e co-participantes nos processos sociopolíticos. Os conselhos são “novidades” crescentes, mas quais são seus níveis decisórios? Como são constituídos? Que níveis de confiança mútua estabelecem?
Participação
Quem delega poderes não pode reclamar!
Para participar, é necessário fazer parte, estar incluído!
Participação e esfera pública são idéias inseparáveis. Fazem parte da própria concepção de política. É necessário refletir sobre esse termo.
Política nos remete à pólis – idéia grega que expressa a vida coletiva e o exercício de nossa esfera pública. Refere-se, então, às negociações entre os indivíduos, ao embate de nossos diálogos, a nossas falas e ações possíveis para além dos foros íntimo e privado, a nossas representações sociais coletivas. Entretanto, nossa cultura política se encontra esgarçada em sua dupla composição: enquanto cultura e enquanto política. A cultura como representação simbólica dos valores das sociedades mostra-se esgarçada enquanto possibilidade de reforço da coesão social. Os processos que (con)formam as representações sociais estão ligados à ação comunicativa e às práticas sociais e públicas (em suma, aos sistemas significantes, verbais e não verbais), como os diálogos, os rituais, os processos produtivos, as instituições, as artes, os padrões culturais, ou seja, as mediações sociais em seus diferentes espaços. Nossa sociedade informacional pós-industrial é uma sociedade da cultura de massa (e não da cultura das massas, com suas singularidades coletivas). Os recursos que ecoam nossas “falas” são amplos, velozes e tecnicamente sofisticados. Contudo, não reverberam nossas práticas públicas e coletivas, uma vez que pouco as exercitamos. Portanto, antes de discutir se as políticas são eficientes ou não, é necessário estabelecer que critérios norteiam essa eficiência.
É no encontro entre as esferas pública e privada que são construídas as subjetividades necessárias para a constituição da trama social. No dia-a-dia e no engajamento entre os diversos agentes se formam nossas representações sociais. A vida pública é um elemento intrínseco à plena construção da vida privada.
Redes sociais
O que se percebe no mundo contemporâneo, em especial no Brasil, é uma crescente perda de autogestão, além de uma banalização da esfera pública dos indivíduos. O quadro econômico de acirrado abismo social tende a reduzir ou quase anular a auto-estima das pessoas e sua auto-percepção e valorização pessoal, fatos que quase inviabilizam qualquer ação que busque uma requalificação social.
Creio que nosso desafio, hoje, é alcançar formas que, para além de preservar, democratizar e incentivar modos e práticas culturais diversificados, criem estratégias que reforcem o exercício público e político dos diversos atores sociais, de forma que todos e cada um possam ser protagonistas de si mesmos.
Creio, firmemente, que nosso desafio é conseguir constituir redes diversificadas de agentes sociais. O próprio conceito de rede reforça a possibilidade de êxito de qualquer proposta: rede que se estabelece a partir do comprometimento e do envolvimento das mais diversas esferas. É esse trabalho de “varejo” que se pode efetivamente construir novas possibilidades de caminhos conjuntos. Uma ação que se desdobra nos usuários mais diretos e destes com suas redes mais particularizadas que, pouco a pouco, podem se agregar aos “fios” anteriores. Dessa nova trama serão irradiados novos fios (que a ela se unem) e assim sucessivamente, tal qual nós de uma rede que se vai tecendo.
O que mais justifica e possibilita a sustentabilidade (entendida como a possibilidade de continuidade das ações) é o envolvimento das pessoas ou grupos em suas próprias condições de reprodução. O capital social é que gera as condições para que uma sociedade crie e desenvolva seus próprios fins, com governança e participação, considerando que os projetos coletivos necessitam do engajamento de muitos e que isso será alcançado se respaldado pela confiança coletiva e esta, pela capacidade de inclusão do outro como parceiro.
Lugar e não lugar
A cidade é uma construção material e, sobretudo, um espaço que resulta dos modos culturais dos que nela habitam e dela participam. Isso a transforma em um lugar apropriado afetivamente, ainda que sujeito a representações ideologicamente constituídas.
O espaço urbano reflete modos particularizados de vida social e sociabilidades (expressos, principalmente, nos espaços públicos de ruas e praças). É também, e como reflexo, o espaço das contradições, conflitos e ambiguidades. Um tecido social em crise acirra o caos urbano – violência, pobreza, individualismo, isolamento, privatização da esfera pública. Os mecanismos para a reversão de tal situação precisam ser identificados por meio de condutas metodológicas que busquem flagrar potencialidades para uma requalificação dos espaços públicos enquanto espaços de sociabilidades múltiplas e que identifiquem estratégias para um planejamento urbano que, em vez de reforçar experiências homogeneizadas (e ao mesmo tempo fragmentárias), possa reforçar a produção da cidade enquanto lugar antropológico permeado de sentido e memória.
Lugar pode ser entendido como expressão da singularidade, com toda a carga identitária (identidade com e do lugar), afetiva e simbólica que este assume.
Não lugar pode ser entendido pela ausência de referências com identidade própria e com a possibilidade de um relacionamento efetivo entre indivíduo e território. O não lugar se constitui de espaços de fraca apropriação e de relações efêmeras entre as pessoas. Tem menos a ver com cenários padronizados do que com seu oposto: a espetacularização dos espaços.
Lugar é pausa e contato. É real e singular. Gera experiência. É espaço usado e vivido. Não lugar é movimento e indiferença. É artificial e universal. Gera virtualidade. É espaço consumido e observado.
Em suma, deve-se buscar refletir sobre as condições de nossa urbanidade e nossa sociabilidade; refletir sobre as potencialidades e dificuldades para a qualificação e a vitalização dos espaços e sobre a gestão cultural do espaço da cidade (entendida pelo valor de uso dos lugares, e não pelo valor de troca em que a própria cidade é tomada como produto a ser consumido de maneira efêmera).
Gestão compartilhada da cultura
Pode-se entender cultura como um processo de sedimentação de memórias, a longo ou médio prazo, que opera com as diferenças de toda a sociedade. Se entendida dessa forma, seus propósitos são contrários ao da lógica de mercado – tomando esta por sua busca de imediatismo e padronização.
Se o agente da cultura for exclusivamente o Estado, a tendência é desenvolver políticas culturais marcadas por um “patrimonialismo estadista” ou por um “dirigismo estatal”. Se o agente for exclusivamente o mercado, culminaria em um “mercantilismo cultural” ou na “privatização da vida cultural”.
Ações consorciadas e conselhos podem se mostrar ferramentas importantes. Parcerias público-privadas, governo-sociedade e formas diversas de parceria e compartilhamento precisam ser buscadas.
O Brasil vivenciou durante muito tempo a falência de políticas sociais públicas inclusivas, ficando sob a ação sociocultural de organizações não governamentais. São mais de cem mil ONGs e centenas de milhares de voluntários. Caminho que, sozinho, também não resolve.
O aterrorizante “abismo social” que marca a sociedade brasileira tem mobilizado cada vez mais ações de segmentos os mais diversificados. Quando nos detemos nos índices de pobreza e de ausência de condições mínimas de vida, vemos um quadro no mínimo estarrecedor.
Em face de tanta carência, não podemos pensar isoladamente na arte, na cultura, na educação, na sociabilidade, na exclusão social ou em outros tantos “nas”. Não podemos implementar ações isoladas. Trata-se de prover e garantir a própria cidadania. Cultura e cidadania seriam como que palavras de ordem.
A história da modernidade buscou regimentar a esfera estatal como representante única da esfera pública. Pensamentos contrários buscariam atribuir a todo indivíduo três atuações básicas: pública, privada e íntima. Desse modo, as políticas culturais, sendo da esfera pública, estariam ligadas tanto ao Estado quanto à sociedade inteira.
Não há, portanto, como dissociar a ação cultural de noções ligadas à cidadania, à justiça social, à afirmação da sociedade civil e da ação pública ou mesmo à ética. Devemos somar todas as forças possíveis, conclamar os diversos agentes sociais e a sociedade.
Que papel a cultura pode ter na mudança da realidade? Como fazer belos conceitos saírem do papel (empoderamento, protagonismo social, responsabilidade social, inclusão social, sustentabilidade, capacitação profissional e geração de renda e emprego através da cultura)? Como estabelecer e fortalecer redes sociais? Como estimular e incorporar a governança e o capital social como estratégias para nossas ações? Como promover a ética como a estética de vida dos indivíduos? São desafios que nos são lançados diariamente enquanto agentes da cultura.
EMENTA:
Cultura como processo. Gestão cultural e seus agentes. Conceitos correlatos e constituintes da gestão cultural. Gestão cultural e participação.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.
CHAUÍ, Marilena. Considerações sobre a democracia e alguns dos obstáculos à sua concretização. In: Seminário Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Polis.
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública: a construção simbólica dos espaços públicos no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
RATTNER, Henrique. Prioridade: construir o capital social – os descaminhos do desenvolvimento. (2000) Disponível em http://www.abdl.org.br/rattner.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1996.
SEVCENKO, Nicolau. O desafio das tecnologias à cultura democrática. In PALLAMIN, Vera M. (org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 37-47.
** Arquiteto e urbanista, doutor em História, professor do curso de graduação em Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador do Laboratório de Ações Culturais (Labac-UFF), coordenador do Ponto de Cultura Niterói Oceânico (Ministério da Cultura/CCARO) e presidente do Conselho de Cultura de Niterói (2008-2010). E-mail: lafrodrigues@vm.uff.br.
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