Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra, tem trazido a um grande número de leitores e estudiosos uma gama enorme de contribuições sobre mecanismos e engrenagens, objetivos e subjetivos, da sociedade contemporânea. Temas como o globalismo e o localismo, tão centrais nos debates políticos mundiais, são por ele analisados, contextualizados e debatidos em busca, não de respostas, mas, sim, de um constante e progressivo questionamento. Afinal, como diz Mauro Matti, ao comentar sobre a lógica do pensamento de Bauman:
´´a lógica do pensamento de Bauman nos leva compreender que não existem determinismos na vida social. Isso se os atores enfrentarem e exercitarem até o fim sua capacidade de ação – que é, afinal, a capacidade de modificar o curso dos acontecimentos a partir de novos investimentos nas relações e nos vínculos, entendidos como elementos essenciais na construção de um novo capital social. Não de modo ingênuo, mas segundo uma reflexão contínua e séria sobre as condições do próprio agir``(BAUMAN, 12)
E, então, com essas palavras, Mauro Matti termina o prefácio que abre o caminho a mais um mundo de reflexões reais e poéticas, alegres e dolorosas, ricas e miseráveis da e na sociedade contemporânea no livro de Bauman intitulado Confiança e medo na cidade. Livro este onde temas como (in)segurança, medo, desigualdade indiferença, ordenação, controle, opressão, estigma, preconceito e indigência inter relacionam-se com temas como solidariedade, cidadania, espaço público, democratização, alteridade, identidade, espectativa, esperança, luta, expressão e compaixão.
E, assim, paralelo ao livro, desenha-se esse texto, aproximando tais discussões à cidade do Rio de Janeiro. Onde, de cada um dos três capítulos da obra referida serão extraídas reflexões sobre o dia-a-dia desta cidade, tão local e tão global como algumas poucas, porém muito influentes, no mundo.
Confiança e medo na cidade
Uma palavra inquieta a humanidade – segurança. Ela parece não ter resposta. Ela parece não ter pergunta. Melhor, ela parece. Perguntas como: O que é segurança? Onde há segurança? o que é preciso para se estar seguro? O que é se sentir seguro? Quem disse que não estamos seguros ou que somos tão frágeis perante o outro, ao mundo?; e muitas outras circulam, acompanhadas de muitas outras, pelas sociedades contemporâneas. Como esperar de algo tão individual e tão coletivo simultaneamente essa precisão – uma única resposta – num mundo de possibilidade que um e todos os indivíduos carregam dentro e fora de si?
Perante a isso, Bauman, no primeiro capítulo da sua obra, aponta para a insegurança. Insegurança esta representada no espaço, na língua, no outro. Hoje, grandes cidades como o Rio de Janeiro deparam-se com um número cada vez maior de condomínios e tecnologias de segurança. Um mundo de frustrações. Estas manifestadas nas insatisfações com os resultados, pois, com todo o isolamento e proteção de que dispõem alguns ´´cidadãos``, não se faz presente a garantia da segurança:
´´Não se entende porque os regulamentos por nós mesmos não apresentam... benefício e proteção para cada um de nós. Por isso, se a proteção de fato disponível e as vantagens que desfrutamos não estão totalmente à altura das nossas espectativas; se nossas relações não são aquelas que gostaríamos de desenvolver; se as regras não são exatamente como deveriam e, a nosso ver, poderiam ser; tendemos imaginar maquinações hostis, complôs, conspirações de um inimigo, que se encontra em nossa porta ou embaixo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um crime ou uma intenção criminosa``(BAUMAN, 15)
Continuando, em suma, deve haver alguém responsável por minhas atitudes frustradas em busca de segurança. E, ao se deparar com tão dura verdade, certos indivíduos, diante de tão forte e eminente constatação de sua fragilidade, reagem depositando as suas inseguranças, as suas fragilidades, os seus medos, as suas frustrações no outro. Percorrendo um caminho onde a impossibilidade de total segurança (proteção própria), como resposta a todos os investimentos afetivos e financeiros, gera o delinqüente. Este acaba sendo ´´culpado`` e fica com a responsabilidade de responder pelas ineficiências de certos indivíduos e, posteriormente da sociedade, nas suas relações internas e externas, consigo, com a realidade que faz parte e com o mundo. Nesse contexto, Buaman faz a seguinte consideração sobre a (in)segurança:
´´quando percebemos que não iremos alcançá-la só conseguimos explicar o fracasso imaginando que ele se deve um ato mau e premeditado, o que implica a existência de um delinqüente.`` (BAUMAN, 15)
No caso do Rio de Janeiro, investir em segurança é um privilégio, residencial e logístico, para poucos. Que, em contrapartida, justificam seus fracassos, depositam suas frustrações e inseguranças na figura e no espaço do pobre. Ou seja, em pessoas que na sua grande maioria são negras e que moram em subúrbios, periferias e favelas das cidades. Pessoas que não escolheram ser pobres e que se encontram nesta condição por causa da condição desigual em que vivem frente a alguns poucos indivíduos e ao capitalismo de consumo. Ou seja, essa delinqüência, tem cor e endereço – tem dono. Diante disso, eis o paradigma no qual Bauman elenca a cidade a globalização:
´´as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização. Os cidadãos e aqueles que foram eleitos como seus representantes estão diante de uma tarefa que não podem nem sonhar em resolver: a tarefa de encontrar soluções locais para condições globais``(BAUMAN, 32)
É nas diferentes localidades da cidade que se observam as construções de laços – consigo, com o outro, com o lugar de origem e com os outros lugares -, onde a diversidade diverge e converge, e como essa busca por espaços ´´seguros`` vai ao encontro dos ´´espaços vedados``[1]:
´´quanto mais nos separamos de nossas vizinhanças imediatas, mais confiança depositamos na vigilância do ambiente... Existem em muitas áreas urbanas, um pouco no mundo todo, casas protegidas para proteger seus habitantes, e não para integrá-los as comunidades as quais pertencem``(BAUMAN, 25)
Tal situação, claramente, pode ser vista, por exemplo, nas relações entre os moradores de grandes condomínios localizados na zona sul da cidade e seus vizinhos mais próximos, os morros e favelas que os circundam. Onde, ´´a cerca (muros) separa o ´´gueto voluntário`` dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter``. Até porque ´´para aqueles que vivem num ´´gueto voluntário``, os outros guetos são espaços ´´nos quais não entrarão jamais``. Assim como, ´´para aqueles que estão nos ´´guetos involuntários``, a área a que estão confinados – politicamente, culturalmente, economicamente e socialmente - (excluídos de qualquer outro lugar) é um espaço do qual ´´não lhes é permitido sair``(Bauman, 2005). Fato que, historicamente, atravessa os tempos na estrutura desigual de classes onde, no Brasil, os (poucos) ricos ficam cada vez mais ricos e os (muitos) pobres ficam cada vez mais pobres, assim como suas localidades.
Portanto, tal isolamento só aumenta a intolerância à diversidade, esta vem ideologicamente disfarçada de busca por uniformidade, seja ela nos condomínios ou bairros residenciais. Locais que, na sua homogeneidade, reduzem – se não acabam – com a diversidade de experiências locais e humanas, fragmentando cada vez mais as pessoas, os espaços e as expectativas de vida. Daí a importância social, política e cultural do livre acesso à cidade e à cidadania para que haja mudança. Mudança esta, onde, como aponta Bauman, ´´a fusão que uma compreensão recíproca exige só poderá resultar de uma experiência compartilhada, e certamente não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem compartilhar o espaço.
Buscar abrigo na caixa de Pandora: medo e incerteza na vida urbana
´´a lógica do pensamento de Bauman nos leva compreender que não existem determinismos na vida social. Isso se os atores enfrentarem e exercitarem até o fim sua capacidade de ação – que é, afinal, a capacidade de modificar o curso dos acontecimentos a partir de novos investimentos nas relações e nos vínculos, entendidos como elementos essenciais na construção de um novo capital social. Não de modo ingênuo, mas segundo uma reflexão contínua e séria sobre as condições do próprio agir``(BAUMAN, 12)
E, então, com essas palavras, Mauro Matti termina o prefácio que abre o caminho a mais um mundo de reflexões reais e poéticas, alegres e dolorosas, ricas e miseráveis da e na sociedade contemporânea no livro de Bauman intitulado Confiança e medo na cidade. Livro este onde temas como (in)segurança, medo, desigualdade indiferença, ordenação, controle, opressão, estigma, preconceito e indigência inter relacionam-se com temas como solidariedade, cidadania, espaço público, democratização, alteridade, identidade, espectativa, esperança, luta, expressão e compaixão.
E, assim, paralelo ao livro, desenha-se esse texto, aproximando tais discussões à cidade do Rio de Janeiro. Onde, de cada um dos três capítulos da obra referida serão extraídas reflexões sobre o dia-a-dia desta cidade, tão local e tão global como algumas poucas, porém muito influentes, no mundo.
Confiança e medo na cidade
Uma palavra inquieta a humanidade – segurança. Ela parece não ter resposta. Ela parece não ter pergunta. Melhor, ela parece. Perguntas como: O que é segurança? Onde há segurança? o que é preciso para se estar seguro? O que é se sentir seguro? Quem disse que não estamos seguros ou que somos tão frágeis perante o outro, ao mundo?; e muitas outras circulam, acompanhadas de muitas outras, pelas sociedades contemporâneas. Como esperar de algo tão individual e tão coletivo simultaneamente essa precisão – uma única resposta – num mundo de possibilidade que um e todos os indivíduos carregam dentro e fora de si?
Perante a isso, Bauman, no primeiro capítulo da sua obra, aponta para a insegurança. Insegurança esta representada no espaço, na língua, no outro. Hoje, grandes cidades como o Rio de Janeiro deparam-se com um número cada vez maior de condomínios e tecnologias de segurança. Um mundo de frustrações. Estas manifestadas nas insatisfações com os resultados, pois, com todo o isolamento e proteção de que dispõem alguns ´´cidadãos``, não se faz presente a garantia da segurança:
´´Não se entende porque os regulamentos por nós mesmos não apresentam... benefício e proteção para cada um de nós. Por isso, se a proteção de fato disponível e as vantagens que desfrutamos não estão totalmente à altura das nossas espectativas; se nossas relações não são aquelas que gostaríamos de desenvolver; se as regras não são exatamente como deveriam e, a nosso ver, poderiam ser; tendemos imaginar maquinações hostis, complôs, conspirações de um inimigo, que se encontra em nossa porta ou embaixo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um crime ou uma intenção criminosa``(BAUMAN, 15)
Continuando, em suma, deve haver alguém responsável por minhas atitudes frustradas em busca de segurança. E, ao se deparar com tão dura verdade, certos indivíduos, diante de tão forte e eminente constatação de sua fragilidade, reagem depositando as suas inseguranças, as suas fragilidades, os seus medos, as suas frustrações no outro. Percorrendo um caminho onde a impossibilidade de total segurança (proteção própria), como resposta a todos os investimentos afetivos e financeiros, gera o delinqüente. Este acaba sendo ´´culpado`` e fica com a responsabilidade de responder pelas ineficiências de certos indivíduos e, posteriormente da sociedade, nas suas relações internas e externas, consigo, com a realidade que faz parte e com o mundo. Nesse contexto, Buaman faz a seguinte consideração sobre a (in)segurança:
´´quando percebemos que não iremos alcançá-la só conseguimos explicar o fracasso imaginando que ele se deve um ato mau e premeditado, o que implica a existência de um delinqüente.`` (BAUMAN, 15)
No caso do Rio de Janeiro, investir em segurança é um privilégio, residencial e logístico, para poucos. Que, em contrapartida, justificam seus fracassos, depositam suas frustrações e inseguranças na figura e no espaço do pobre. Ou seja, em pessoas que na sua grande maioria são negras e que moram em subúrbios, periferias e favelas das cidades. Pessoas que não escolheram ser pobres e que se encontram nesta condição por causa da condição desigual em que vivem frente a alguns poucos indivíduos e ao capitalismo de consumo. Ou seja, essa delinqüência, tem cor e endereço – tem dono. Diante disso, eis o paradigma no qual Bauman elenca a cidade a globalização:
´´as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização. Os cidadãos e aqueles que foram eleitos como seus representantes estão diante de uma tarefa que não podem nem sonhar em resolver: a tarefa de encontrar soluções locais para condições globais``(BAUMAN, 32)
É nas diferentes localidades da cidade que se observam as construções de laços – consigo, com o outro, com o lugar de origem e com os outros lugares -, onde a diversidade diverge e converge, e como essa busca por espaços ´´seguros`` vai ao encontro dos ´´espaços vedados``[1]:
´´quanto mais nos separamos de nossas vizinhanças imediatas, mais confiança depositamos na vigilância do ambiente... Existem em muitas áreas urbanas, um pouco no mundo todo, casas protegidas para proteger seus habitantes, e não para integrá-los as comunidades as quais pertencem``(BAUMAN, 25)
Tal situação, claramente, pode ser vista, por exemplo, nas relações entre os moradores de grandes condomínios localizados na zona sul da cidade e seus vizinhos mais próximos, os morros e favelas que os circundam. Onde, ´´a cerca (muros) separa o ´´gueto voluntário`` dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter``. Até porque ´´para aqueles que vivem num ´´gueto voluntário``, os outros guetos são espaços ´´nos quais não entrarão jamais``. Assim como, ´´para aqueles que estão nos ´´guetos involuntários``, a área a que estão confinados – politicamente, culturalmente, economicamente e socialmente - (excluídos de qualquer outro lugar) é um espaço do qual ´´não lhes é permitido sair``(Bauman, 2005). Fato que, historicamente, atravessa os tempos na estrutura desigual de classes onde, no Brasil, os (poucos) ricos ficam cada vez mais ricos e os (muitos) pobres ficam cada vez mais pobres, assim como suas localidades.
Portanto, tal isolamento só aumenta a intolerância à diversidade, esta vem ideologicamente disfarçada de busca por uniformidade, seja ela nos condomínios ou bairros residenciais. Locais que, na sua homogeneidade, reduzem – se não acabam – com a diversidade de experiências locais e humanas, fragmentando cada vez mais as pessoas, os espaços e as expectativas de vida. Daí a importância social, política e cultural do livre acesso à cidade e à cidadania para que haja mudança. Mudança esta, onde, como aponta Bauman, ´´a fusão que uma compreensão recíproca exige só poderá resultar de uma experiência compartilhada, e certamente não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem compartilhar o espaço.
Buscar abrigo na caixa de Pandora: medo e incerteza na vida urbana
No segundo capítulo, Bauman aponta para a racionalização da cidade e o poder de construção simbólica desta na sua comunicação com seus habitantes. O poder público assume, resume e transforma a cidade em dados e estatísticas. Tais dados e estatísticas, paralelos aos padrões das relações globais de consumo, ganham vida através das políticas públicas imprimindo marcas profundas no planejamento urbano da cidade. Em outras palavras, uma quantificação e uma geometrização da cidade. Fatores estes que dificultam a emergência de uma melhor (com)vivência no espaço público.
Quando se fala em poder público, este ´´público`` pode representar duas vivências. A que dá e a que recebe poder, tornando público ou não determinado território. Daí surgem tantas discussões sobre a impotância de creches, hospitais, escolas, postos de saúde, etc. É uma via de, enquanto serviços e gestores, domínio e controle (geração de dados) através das instituições reguladoras. Porém, não havendo dados – ou como obtê-los – surgem dados falsos ou, simplesmente, não há dados, para tais instituições frente ao Estado, não há necessidade de gerir. Em outras palavras, não há porque ´´existir`` ou ´´existir`` de forma correta um território que aponta as fraquezas, deficiências e ineficiências do Estado.
Diante do contexto apresentado, torna-se de suma importância uma reflexão sobre esses dados: Quem os recolhe? Como os recolhe? De qual perspectiva eles emanam? E as sérias conseqüências que a existência ou não destes, assim como a confiabilidade ou não de seus resultados pode influenciar no destino local e global das políticas públicas na cidade do Rio de Janeiro.
Primeiro, é importante esclarecer que grande parte das pesquisas feitas por órgãos públicos e privados no Brasil não procura entender porque poucos estão tão ricos, mas procuram entender porque muitos estão tão pobres. Outro aspecto importante, é que valores são levados em conta nessas pesquisas. Bauman, nesse sentido, aponta como exemplo o termo-situação desemprego:
´´Desempregado é uma palavra perigosa, pois sugere mais do que realmente diz. Estar desempregado significa que a regra, para os seres humanos, é estar empregado; portanto estar desempregado é um incidente, uma coisa bizarra, anômala, que é preciso enfrentar. Mas agora, cada vez com maior freqüência, podemos ouvir algumas pessoas dizerem que outras são supérfulas – não desempregadas, mas supérfulas. ``(BAUMAN, 82-83)
Assim como o exemplo do desempregado, esses dados legitimam valores como racismo e preconceito, estes ´´legitimados`` na figura do pobre, do favelado, do camelô, do negro, formas de exclusão, ou melhor, formas de excluídos. Tal constatação leva a explicação de como são feitas essas pesquisas, assim como os paradigmas que as envolvem. Dando como exemplo o IBGE, na figura do recenseador, este é instruído para a coleta de dados. Coletas estas que se contrapõem com a contribuição crítica do recenseador, pois tal órgão prefere aumentar a diversidade de respostas dos entrevistados, buscando uma possível ´´aproximação`` de resultados, do que investir na participação e contribuição crítica do recenseador diante de como tal ´´realidade`` se apresenta, ou melhor, é representada.
Daí resulta uma diversidade enorme de respostas que dotarão os gestores de dados, em diversas esferas, de informações sobre ´´a realidade`` com a qual terão de administrar. Uma realidade preconceituosa e racista, onde pessoas pobres dizem que não são tão pobres quanto aparentam; negros dizem que são pardos; analfabetos se dizem letrados; desempregados dizem que estão empregados. Realidade esta dita ao recenseador que toma nota. Só nessa colocação, já se pode ter uma noção do quanto tais valores afligem a sociedade e distorcem realidades.
Porém, no Rio de Janeiro, há uma situação muito particular que são as favelas e morros da cidade. No atlas entregue aos professores da rede pública de ensino[2], áreas da cidade como o Complexo do Alemão, por exemplo, não contam com dados referentes a renda média de seus habitantes. Já uma área como a Rocinha, a maior favela da América Latina, conta com dados inverossímeis referentes à grande população que lá se encontra – 45.585. Surgem perguntas como: será que os responsáveis pela coleta de dados tiveram livre acesso às favelas ou parte delas? Se não tiveram acesso a ela ou a algumas partes por que esses dados são levados em conta? Como e pra que trabalhar com dados imprecisos?
E, conseqüentemente, gera-se uma massa de ´´indigentes``. Pessoas não computadas ou mal computadas que, estatisticamente, sem perceber, reproduzem preconceitos e reforçam dificuldades nas suas comunidades. Que melhor justificativa o poder público poderia querer! Pois não tendo quantidade ou tendo uma quantidade inexata, uma favela que precisa de seis escolas, por exemplo, segundo os ´´dados`` referentes à sua quantidade habitantes, só receberá – isso, quando recebe – uma. E assim continua em outras instituições como creches, hospitais, e postos de saúde, por exemplo.
Outra característica que os mapas apresentam é a segmentação dos espaços das favelas, algumas ganham o status de bairro vizinho, porém, isso é algo claramente visível em locais de grande extensão territorial e pouca penetração e interesse público como os Complexos do Alemão, Maré e Rocinha, por exemplo. Nesse ponto, as favelas, assim como praticamente toda a cidade, vão desencontrar com o planejamento urbano contemporâneo, que tem como premissa de organização (ordenação) e controle a planificação e geometrização da cidade. Algo praticamente impossível para o Rio de Janeiro, cidade onde todo seu diferencial está na sinuosidade de suas formas geográficas. Formas estas que necessariamente, principalmente nas áreas turísticas da cidade, não precisão ou não devem, para o poder público, contar com favelas ao seu redor esteticamente e administrativamente. É muito estranho que uma região administrativa como, por exemplo, a Ilha do Governador não tenha no mapa algumas de suas grandes favelas com status de bairros vizinhos, enquanto o Vidigal, neste mesmo mapa, é considerado como bairro visinho de São Conrado. A Ilha do Governador, terceira maior arrecadadora das regiões administrativas da cidade, tem um vínculo político-administrativo com os morros e favelas que dela fazem parte, pois a administração, assim como a arrecadação, deles está diretamente ligada ao bairro de que fazem parte. Já no caso do Vidigal, acontece justamente o contrário. Seu status de bairro, além de segregá-lo geopoliticamente de São Conrado, exige uma auto-suficiência gestora, administrativa e arrecadadora que segrega e ressalta disparidades entre áreas tão próximas[3], colocando uma barreira – muro – em uma situação que só beneficiaria politicamente, administrativamente e financeiramente o Vidigal, que seria o fato deste fazer parte do bairro de São Conrado. Daí tomam vulto na agenda pública às discussões sobre remoção de favelas.
Paralelamente, a cidade se vê cada vez mais obrigada a verticalizar-se e seguimentar-se. Tais mudanças estão impressas nos redesnhos das casas, das praças, das ruas, dos bairros e da própria cidade, uma arquitetura do medo, como aponta Bauman:
´´A arquitetura do medo e da intimidação espalha-se pelos espaços públicos das cidades transformando-a sem cessar – embora furtivamente – em áreas extremamente vigiadas, dia e noite.``(BAUMAN, 63)
Assim, essa transição da cidade de espaços públicos para cidade de espaços ordenados, quantitativa e qualitativamente, imprime segmentações locais, preconceitos e legitima espacialmente a desigualdade, reduzindo a capacidade de descoberta, convivência, construção e aceitação do e com o outro. É o espaço público que oferece o momento físico e psíquico de encontro com a diferença, o diverso. E, por isso geopoliticamente, quando representado em dados ou nas políticas públicas de planejamento urbano, não deve reforçar diferenças isoladas, mas, procurar entender como tais diferensas estão conectadas nas redes relacionais sócio-políticas. Não reforçar uma realidade onde a ´´tendência para retirar-se dos espaços públicos para refugiar-se em ilhas de uniformidade acaba se transformando no maior obstáculo para viver com a diferença, e, desse modo, enfraquece os diálogos e pactos`` (Bauman, 71) e, sim, respeitar o fato de que, com o passar do tempo ´´a exposição à diferença transforma-se em fator decisivo para uma convivência feliz, fazendo secar as raízes urbanas do medo``(71), como aponta Bauman.
Viver com estrangeiros
E, terminando, o ultimo capitulo do livro aponta para uma reflexão sobre as fronteiras demarcadas pela recusa à alteridade. E, nesse sentido explica que:
´´justamente porque se demarcam fronteiras é que, de repente, as diferenças emergem, que as percebemos e nos tornamos conscientes delas. Melhor dizendo, vamos em busca de diferenças justamente para legitimar fronteiras``(BAUMAN, 75)
Tais fronteiras – diferenças – estão representadas na figura do estrangeiro. Porém, assim como todo lugar tem um estrangeiro, todo estrangeiro tem um lugar. Ou seja, ninguém está livre de ser o estrangeiro. Ninguém está livre de se ver no outro, de ser interpretado pelo outro. Porém, algo que tão belamente potencializa a (re)descoberta de si e do outro, no espaço fragmentado e seguimentado, só reforça a suspeito de si e do outro.
A ´´suspeita``, na sociedade contemporânea, é a ´´sentença``, pois nela nunca se é absolvido completamente e nunca se é completamente culpado, gerando maior preocupação e, conseqüentemente, maiores necessidades de controle, manipulação e ordenação, assim como uma contínua, crescente e desesperadora instabilidade, promotora de uma insegurança generalizante. Inviabilizando cada vez mais e a descoberta do e com o ´´outro`` - a alteridade torna-se intransitória.
Nesse contexto, partindo do princípio que a identidade se constrói a partir de um ou mais modelos, Quais são as opções de modelo? Quais opções de modelos são dadas? Quais opções de modelos são possíveis?
Escolher um modelo é um ato orgânico contínuo entre o indivíduo o mundo que o cerca, ou melhor, o mundo que ele aprende, que lhe é apresentado. Daí tornam-se chave estas duas ações: orgânica e contínua. Orgânica no sentido sócio-biológico das relações sociais, onde os órgãos, além de se originarem de uma célula que, em comunhão com outras, posteriormente, formará o tecido que a estes, conseqüentemente dará origem, fazem partem de um sistema. Sistema este, que unido a outros sistemas dá origem a um corpo – corpo social. E o fato deste corpo ser contínuo, além de se remeter a todas as suas categorias processuais (célula, tecido, órgão, sistema), refere-se ao fato de que este tem, em sua natureza, a necessidade de crescer, desenvolver, reproduzir, multiplicar, evoluir. Sendo assim, qualquer falha na comunicação e na continuidade deste corpo social pode acarretar em males físicos e-ou psíquicos, objetivos e-ou subjetivos, reais e-ou virtuais a toda sociedade. Afinal, como exigir a plenitude de um corpo sem a plenitude de suas células, seus tecidos, seus órgãos, seus sistemas, sua psique, seu espírito, seu imaginário?
Portanto, é importante ressaltar que as conseqüências da opção de um modelo são inevitáveis, porém, reversíveis no percurso da constante (re)formação e transformação do indivíduo. Pois este, enquanto atuante, força criativa e criadora, nos processos de transformação social, é quem transpõe e resignifica o modelo ao invés de reproduzi-lo.
Quando se fala em poder público, este ´´público`` pode representar duas vivências. A que dá e a que recebe poder, tornando público ou não determinado território. Daí surgem tantas discussões sobre a impotância de creches, hospitais, escolas, postos de saúde, etc. É uma via de, enquanto serviços e gestores, domínio e controle (geração de dados) através das instituições reguladoras. Porém, não havendo dados – ou como obtê-los – surgem dados falsos ou, simplesmente, não há dados, para tais instituições frente ao Estado, não há necessidade de gerir. Em outras palavras, não há porque ´´existir`` ou ´´existir`` de forma correta um território que aponta as fraquezas, deficiências e ineficiências do Estado.
Diante do contexto apresentado, torna-se de suma importância uma reflexão sobre esses dados: Quem os recolhe? Como os recolhe? De qual perspectiva eles emanam? E as sérias conseqüências que a existência ou não destes, assim como a confiabilidade ou não de seus resultados pode influenciar no destino local e global das políticas públicas na cidade do Rio de Janeiro.
Primeiro, é importante esclarecer que grande parte das pesquisas feitas por órgãos públicos e privados no Brasil não procura entender porque poucos estão tão ricos, mas procuram entender porque muitos estão tão pobres. Outro aspecto importante, é que valores são levados em conta nessas pesquisas. Bauman, nesse sentido, aponta como exemplo o termo-situação desemprego:
´´Desempregado é uma palavra perigosa, pois sugere mais do que realmente diz. Estar desempregado significa que a regra, para os seres humanos, é estar empregado; portanto estar desempregado é um incidente, uma coisa bizarra, anômala, que é preciso enfrentar. Mas agora, cada vez com maior freqüência, podemos ouvir algumas pessoas dizerem que outras são supérfulas – não desempregadas, mas supérfulas. ``(BAUMAN, 82-83)
Assim como o exemplo do desempregado, esses dados legitimam valores como racismo e preconceito, estes ´´legitimados`` na figura do pobre, do favelado, do camelô, do negro, formas de exclusão, ou melhor, formas de excluídos. Tal constatação leva a explicação de como são feitas essas pesquisas, assim como os paradigmas que as envolvem. Dando como exemplo o IBGE, na figura do recenseador, este é instruído para a coleta de dados. Coletas estas que se contrapõem com a contribuição crítica do recenseador, pois tal órgão prefere aumentar a diversidade de respostas dos entrevistados, buscando uma possível ´´aproximação`` de resultados, do que investir na participação e contribuição crítica do recenseador diante de como tal ´´realidade`` se apresenta, ou melhor, é representada.
Daí resulta uma diversidade enorme de respostas que dotarão os gestores de dados, em diversas esferas, de informações sobre ´´a realidade`` com a qual terão de administrar. Uma realidade preconceituosa e racista, onde pessoas pobres dizem que não são tão pobres quanto aparentam; negros dizem que são pardos; analfabetos se dizem letrados; desempregados dizem que estão empregados. Realidade esta dita ao recenseador que toma nota. Só nessa colocação, já se pode ter uma noção do quanto tais valores afligem a sociedade e distorcem realidades.
Porém, no Rio de Janeiro, há uma situação muito particular que são as favelas e morros da cidade. No atlas entregue aos professores da rede pública de ensino[2], áreas da cidade como o Complexo do Alemão, por exemplo, não contam com dados referentes a renda média de seus habitantes. Já uma área como a Rocinha, a maior favela da América Latina, conta com dados inverossímeis referentes à grande população que lá se encontra – 45.585. Surgem perguntas como: será que os responsáveis pela coleta de dados tiveram livre acesso às favelas ou parte delas? Se não tiveram acesso a ela ou a algumas partes por que esses dados são levados em conta? Como e pra que trabalhar com dados imprecisos?
E, conseqüentemente, gera-se uma massa de ´´indigentes``. Pessoas não computadas ou mal computadas que, estatisticamente, sem perceber, reproduzem preconceitos e reforçam dificuldades nas suas comunidades. Que melhor justificativa o poder público poderia querer! Pois não tendo quantidade ou tendo uma quantidade inexata, uma favela que precisa de seis escolas, por exemplo, segundo os ´´dados`` referentes à sua quantidade habitantes, só receberá – isso, quando recebe – uma. E assim continua em outras instituições como creches, hospitais, e postos de saúde, por exemplo.
Outra característica que os mapas apresentam é a segmentação dos espaços das favelas, algumas ganham o status de bairro vizinho, porém, isso é algo claramente visível em locais de grande extensão territorial e pouca penetração e interesse público como os Complexos do Alemão, Maré e Rocinha, por exemplo. Nesse ponto, as favelas, assim como praticamente toda a cidade, vão desencontrar com o planejamento urbano contemporâneo, que tem como premissa de organização (ordenação) e controle a planificação e geometrização da cidade. Algo praticamente impossível para o Rio de Janeiro, cidade onde todo seu diferencial está na sinuosidade de suas formas geográficas. Formas estas que necessariamente, principalmente nas áreas turísticas da cidade, não precisão ou não devem, para o poder público, contar com favelas ao seu redor esteticamente e administrativamente. É muito estranho que uma região administrativa como, por exemplo, a Ilha do Governador não tenha no mapa algumas de suas grandes favelas com status de bairros vizinhos, enquanto o Vidigal, neste mesmo mapa, é considerado como bairro visinho de São Conrado. A Ilha do Governador, terceira maior arrecadadora das regiões administrativas da cidade, tem um vínculo político-administrativo com os morros e favelas que dela fazem parte, pois a administração, assim como a arrecadação, deles está diretamente ligada ao bairro de que fazem parte. Já no caso do Vidigal, acontece justamente o contrário. Seu status de bairro, além de segregá-lo geopoliticamente de São Conrado, exige uma auto-suficiência gestora, administrativa e arrecadadora que segrega e ressalta disparidades entre áreas tão próximas[3], colocando uma barreira – muro – em uma situação que só beneficiaria politicamente, administrativamente e financeiramente o Vidigal, que seria o fato deste fazer parte do bairro de São Conrado. Daí tomam vulto na agenda pública às discussões sobre remoção de favelas.
Paralelamente, a cidade se vê cada vez mais obrigada a verticalizar-se e seguimentar-se. Tais mudanças estão impressas nos redesnhos das casas, das praças, das ruas, dos bairros e da própria cidade, uma arquitetura do medo, como aponta Bauman:
´´A arquitetura do medo e da intimidação espalha-se pelos espaços públicos das cidades transformando-a sem cessar – embora furtivamente – em áreas extremamente vigiadas, dia e noite.``(BAUMAN, 63)
Assim, essa transição da cidade de espaços públicos para cidade de espaços ordenados, quantitativa e qualitativamente, imprime segmentações locais, preconceitos e legitima espacialmente a desigualdade, reduzindo a capacidade de descoberta, convivência, construção e aceitação do e com o outro. É o espaço público que oferece o momento físico e psíquico de encontro com a diferença, o diverso. E, por isso geopoliticamente, quando representado em dados ou nas políticas públicas de planejamento urbano, não deve reforçar diferenças isoladas, mas, procurar entender como tais diferensas estão conectadas nas redes relacionais sócio-políticas. Não reforçar uma realidade onde a ´´tendência para retirar-se dos espaços públicos para refugiar-se em ilhas de uniformidade acaba se transformando no maior obstáculo para viver com a diferença, e, desse modo, enfraquece os diálogos e pactos`` (Bauman, 71) e, sim, respeitar o fato de que, com o passar do tempo ´´a exposição à diferença transforma-se em fator decisivo para uma convivência feliz, fazendo secar as raízes urbanas do medo``(71), como aponta Bauman.
Viver com estrangeiros
E, terminando, o ultimo capitulo do livro aponta para uma reflexão sobre as fronteiras demarcadas pela recusa à alteridade. E, nesse sentido explica que:
´´justamente porque se demarcam fronteiras é que, de repente, as diferenças emergem, que as percebemos e nos tornamos conscientes delas. Melhor dizendo, vamos em busca de diferenças justamente para legitimar fronteiras``(BAUMAN, 75)
Tais fronteiras – diferenças – estão representadas na figura do estrangeiro. Porém, assim como todo lugar tem um estrangeiro, todo estrangeiro tem um lugar. Ou seja, ninguém está livre de ser o estrangeiro. Ninguém está livre de se ver no outro, de ser interpretado pelo outro. Porém, algo que tão belamente potencializa a (re)descoberta de si e do outro, no espaço fragmentado e seguimentado, só reforça a suspeito de si e do outro.
A ´´suspeita``, na sociedade contemporânea, é a ´´sentença``, pois nela nunca se é absolvido completamente e nunca se é completamente culpado, gerando maior preocupação e, conseqüentemente, maiores necessidades de controle, manipulação e ordenação, assim como uma contínua, crescente e desesperadora instabilidade, promotora de uma insegurança generalizante. Inviabilizando cada vez mais e a descoberta do e com o ´´outro`` - a alteridade torna-se intransitória.
Nesse contexto, partindo do princípio que a identidade se constrói a partir de um ou mais modelos, Quais são as opções de modelo? Quais opções de modelos são dadas? Quais opções de modelos são possíveis?
Escolher um modelo é um ato orgânico contínuo entre o indivíduo o mundo que o cerca, ou melhor, o mundo que ele aprende, que lhe é apresentado. Daí tornam-se chave estas duas ações: orgânica e contínua. Orgânica no sentido sócio-biológico das relações sociais, onde os órgãos, além de se originarem de uma célula que, em comunhão com outras, posteriormente, formará o tecido que a estes, conseqüentemente dará origem, fazem partem de um sistema. Sistema este, que unido a outros sistemas dá origem a um corpo – corpo social. E o fato deste corpo ser contínuo, além de se remeter a todas as suas categorias processuais (célula, tecido, órgão, sistema), refere-se ao fato de que este tem, em sua natureza, a necessidade de crescer, desenvolver, reproduzir, multiplicar, evoluir. Sendo assim, qualquer falha na comunicação e na continuidade deste corpo social pode acarretar em males físicos e-ou psíquicos, objetivos e-ou subjetivos, reais e-ou virtuais a toda sociedade. Afinal, como exigir a plenitude de um corpo sem a plenitude de suas células, seus tecidos, seus órgãos, seus sistemas, sua psique, seu espírito, seu imaginário?
Portanto, é importante ressaltar que as conseqüências da opção de um modelo são inevitáveis, porém, reversíveis no percurso da constante (re)formação e transformação do indivíduo. Pois este, enquanto atuante, força criativa e criadora, nos processos de transformação social, é quem transpõe e resignifica o modelo ao invés de reproduzi-lo.
[1] Vedados porque desencorajam as pessoas a ficar por perto ou impedem sua entrada (Bauman, 84)
[2] Atlas escolar da cidade do Rio de Janeiro. Produzido no mandato do prefeito Luiz Paulo Conde, em 2000.
[3] No mapa anteriormente referido encontram-se os seguintes dados sobre as duas áreas colocadas em questão, São Conrado e Vidigal, respectivamente: Superfície (km2): 6,37 – 1,91; População (habitantes): 13.9996 – 12.052; Densidade demográfica (hab. – Km2): 2.200 – 6.316,6; Renda média (salário mínimo): 22,5 – 3,1.
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